Repórter e escritor, Roberto Saviano é conhecido na Itália por infiltrar-se nas organizações mafiosas e expor a influência desses grupos em toda a sociedade – no pequeno comércio da esquina, nas empreiteiras, nas estatais e agora também no executivo, legislativo e judiciário. Mundo afora, o narcotráfico está cada vez mais atuante nos centros de poder. A devastadora obra de Saviano, “Gomorra” (ironia com o nome de uma das máfias, a Camorra) tem uma edição brasileira; leitura que recomendo. 

Por causa do livro que também deu origem a filme premiado em Cannes, Roberto foi jurado de morte. Desde então vive incógnito, sob nomes falsos e disfarces. Mas continua trabalhando, incansável. Disse há pouco: “Escrevo em quartos de albergues do interior; em casas discretas ou vazias, nunca por mais de um mês. Todas minúsculas, escuras, não posso abrir as janelas. Não escolho; são locais determinados pelos policiais e guarda-costas após cuidadosa seleção. Quando os vizinhos descobrem, devo mudar-me depressa; minha presença incomoda. E ocorre às vezes aquela chantagem do proprietário que oferece a casa, mas exige aluguel três vezes maior”. 

Além do estorvo físico, Saviano desabafa sua queixa mais dolorosa: o cinismo, a covardia, o silêncio, a omissão, a cumplicidade de parte da mídia com a marginalidade, a injustiça, a impunidade, os estados de exceção. Colegas da imprensa acusam-no de estrelismo – quando não o denigrem, insinuando que “alguém deve estar pagando-o pra isso”. Ofensa previsível: para certo tipo de mentalidade mesquinha não existe idealismo legítimo na alma humana; há sempre alguém por trás, financiando. Roberto acha graça: “Quando recebo ataques nas redes sociais, jornais ou TV, noto que estou certo. Ao tentarem me deslegitimar, mostram que minhas palavras amedrontam. Alguns jornalistas são cúmplices – e bem pagos – porque o controle da informação é a primeira meta das tiranias”.

A coragem e a tenacidade dos que não se calam e persistem sob ameaças da escuridão, do autoritarismo, da truculência – de Giordano Bruno a Salman Rushdie – sempre me fascinaram. E, por mais inusitado que pareça, percebo certa poesia nessas lutas gloriosas. 

Camus, em “O Homem Revoltado”, conta o caso de um prisioneiro do regime stalinista que juntou cacos de madeira e construiu um teclado grosseiro – do qual não saía som nenhum, lógico. Mesmo assim, o homem postava-se às noites em sua cela e dedilhava o piano imaginário, tocando melodias que só ele ouvia. O episódio pode ter inspirado Roman Polanski, diretor de “O Pianista”, quando o músico polonês Wladyslaw Szpilman, interpretado por Adrien Brody, simula executar uma sonata às escondidas das patrulhas nazistas movendo os dedos sobre um piano fechado. 

Em tempos sombrios, outros teclados – como os dos computadores – estão sendo silenciados à força, sufocando aquilo que os cidadãos têm de mais sagrado: o protesto, o direito à livre expressão para denunciar, criticar, duvidar, contestar, repudiar mentiras, sonhar com um mundo mais digno e, principalmente, alimentar esperanças gerais enquanto lutam. 

No Brasil de vozes caladas à força, filhotes do autoritarismo sonham silenciar as redes sociais, canais democráticos de expressão e diálogo dos mais atentos e dos descrentes das mídias de rabo preso. A desculpa oportunista e mentirosa de sempre – “proteger as crianças de conteúdos nocivos” – disfarça o furor com o qual sonham eliminar os críticos desse governo desastroso e perdulário. Acima de tudo, democracia é liberdade – e não tolera carrascos. Repugnante é lembrar que vários apoiadores da mordaça foram vítimas de censura, prisão e tortura no ado. 

“Escrever, não me privar das minhas palavras significou não perder; não me dar por vencido, não desesperar” disse Roberto Saviano. Seja essa, também, quando necessário, nossa maior motivação.