Já fazia algum tempo desde que a dançarina, artesã e estudante de filosofia Verane Comis, 24, havia notado e estranhado o fato de que não conseguia reagir às publicações de uma pessoa a quem ela seguia em redes sociais. Um dia, a amiga virtual fez uma postagem em tom de conversa, buscando interações. “Eu ia responder, mas não tinha essa opção. Então pensei em mandar uma mensagem para ela, entrei no perfil, e foi assim que vi que ela não estava me seguindo mais, no que concluí que a função de resposta aos Stories (serviço de compartilhamento de imagens temporárias do Instagram) estava limitada àqueles que ela seguia”, lembra. A situação não deixou Verane propriamente triste, mas, em alguma medida, a perturbou. “Me afetou, sim. Depois disso, eu fiquei reflexiva, pensando no motivo. Porque, assim como tem motivo para escolher seguir alguém, sempre há uma razão também para escolher deixar de seguir”, examina.
Movida pela inquietude que o episódio despertou nela, Verane fez ela própria uma publicação, também via Story, questionando se amigos seus já se tinham percebido naquela situação. Ela também perguntava o que pensavam a respeito. O retorno confirmou como casos assim são comuns, além de evidenciar que, quando nos vemos excluídos ou bloqueados por alguém na esfera digital, é comum que essas experiências repercutam em nós, afetando nossa autopercepção e nos fazendo lidar com, em certa medida, a sensação de rejeição.
“Muitas pessoas conversaram comigo, algumas disseram que já aram por isso e contaram que as pessoas, presencialmente, continuaram agindo normalmente”, conta a artista, comentando que a maioria dos respondentes considerou esse comportamento confuso, mas compreensível. “Outros disseram que muita gente quer ter o número de seguidores maior do que o das pessoas que elas estão seguindo. Por isso, acabam deixando de seguir os outros”, lembra. Nesse caso, os “rejeitados” se mostraram mais insatisfeitos com a situação. Por fim, houve também os que relataram já ter ado por casos assim, mas por um suposto erro da plataforma. A própria Verane reconhece já ter também deixado de seguir conhecidos seus nas redes sociais. “Em geral, acontece com pessoas que considero que não tenham proximidade alguma comigo, e que não há a possibilidade de ter”, observa, justificando que, para ela, as dinâmicas virtuais e presenciais estão cada vez mais misturadas.
“O virtual é o real, e o real é o virtual”
Em parte, a análise dela tem algo próximo do que propõe o doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula. “É seguro dizer que algumas dimensões da nossa vida foram transpostas para o universo digital, existindo uma complementaridade entre o online e o offline”, situa ele, acrescentando que muitos rituais foram adaptados a essas novas tecnologias, valendo-se delas para ganhar caráter oficial. “Um namoro, por exemplo, costuma ser oficializado quando publicizado nesse meio. E um rompimento também. Existe toda uma série de rituais de relações de poder e de valores que são colocados nessas e para além dessas redes”, comenta.
Por sua vez, a psicanalista e especialista em comunicação Cínthia Demaria propõe uma leitura ainda mais radical do imbricamento entre esses espaços. “O virtual é o real, e o real é o virtual”, diz, citando o filósofo tunisiano Pierre Lévy, que pesquisa o impacto da internet na sociedade e as humanidades digitais. Segundo a estudiosa, o nosso cotidiano é atravessado pelo online de forma tão significativa que essa realidade já faz parte da subjetividade da nossa época – o que fica especialmente acentuado neste período de pandemia.
Logo, assim como usamos rotineiramente as ferramentas digitais para mediar nosso contato com o mundo e com as pessoas à nossa volta, também é verdade que os acontecimentos que, teoricamente, estariam s à esfera da digitalidade tendem a se desdobrar para muito além desse ambiente. “Hoje, os smartphones já são uma extensão da nossa memória, dos nossos olhos, dos nossos ouvidos e também das nossas relações”, assinala Anastácio de Paula. Ou seja, se antes era preciso percorrer o meu bairro, minha comunidade na igreja, nos clubes, no trabalho ou na escola para estabelecer contato, e se a possibilidade de estender essas interações era limitada – poderia fazê-lo a partir de cartas, de telefone fixo ou de e-mails –, hoje, a realidade é outra. “É quase como se a gente tivesse desenvolvido a telepatia. Não que eu consiga ler a mente das pessoas, mas já é possível projetar meus pensamentos e me comunicar com o outro a distância”, conclui.
Para ilustrar a reflexão, o doutor em psicologia social se vale do relacionamento que construiu com o seu entrevistador. “À medida que fomos conversando, em que pude contribuir com pautas que você propôs, estabelecemos uma relação. Se, por alguma razão, eu decair, se algo que eu te disser te magoar ou te ofender, e se, então, você me bloquear, apesar de nunca termos tido nenhum encontro presencial, isso vai gerar em mim um sentimento de isolamento, de abandono, de desligamento, que vai ser uma causa de sofrimento relativo”, expõe. Em outras palavras, dá para dizer que as conexões que constituímos virtualmente são tão verdadeiras quanto aquelas que foram forjadas presencialmente. Daí que o fim de uma ou de outra tende a doer igual – mesmo que aquela história já não faça mais tanto sentido para os envolvidos.
“Quando eu sou excluído de um grupo de WhatsApp ou percebo que alguma pessoa deixou de me seguir em alguma rede social, isso causa em mim um impacto, pois, naturalmente, vou me sentir rejeitado, mesmo que eu sequer me relacionasse muito frequentemente com aquele grupo ou com aquela pessoa”, acrescenta o psicólogo. No mesmo sentido, “se eu excluo o outro ou se eu saio do grupo, isso publiciza meu desagrado ou desconforto, e as pessoas podem até não gostar de mim, mas elas não gostam de saber que eu também não gosto delas ou dos posicionamentos delas”, complementa. O estudioso entende que, dependendo do momento que a pessoa está vivendo, o impacto de um aparentemente simples deixar de seguir pode aprofundar o sentimento de isolamento ou marcar uma aproximação daquele sujeito com um novo grupo.
Cínthia Demaria concorda. “A questão é que as amizades podem ser resultado da sugestão de algoritmos, mas as reverberações desses encontros e desencontros vão para muito além da tela”, sublinha a psicanalista. Para ela, como sugere o filósofo polonês Zygmunt Bauman, vivemos hoje um modelo de relacionamentos líquidos, em que laços podem ser facilmente feitos e desfeitos. “Contudo, isso não significa que a gente não se importe quando uma história chega ao fim. Pois, ainda que esses sejam laços frágeis, estamos falando de laços sociais”, pondera.
Na avaliação de Cínthia, aliás, o fim de um laço social virtual pode ser especialmente angustiante. “Para se apresentar nas redes sociais, a gente se modifica e, normalmente, escolhe o melhor de nós para expor nesses espaços. Muitas vezes, chegamos a ficar à mercê de exercer um papel social para obter a aprovação do outro, o que nos deixa ansiosos, preocupados com essa aprovação dos outros”, considera, lembrando que esse fenômeno é típico das interações humanas e não é necessariamente uma novidade. “Mas é algo que ocorre de forma mais exacerbada atualmente”, sentencia. “Logo, se mesmo sob tais condições uma pessoa rompe comigo, essa sensação de rejeição pode se tornar ainda mais acentuada”, salienta.
Intolerância ao diferente
“Quem ama bloqueia”. Quase um mantra para alguns usuários de redes sociais, essa máxima defende que, para preservar uma relação longínqua, vale silenciar aquele amigo ou familiar cujas opiniões e posturas não convergem com as suas. E, de fato, “quando deixamos de seguir alguém que nos chateia, esse movimento pode não significar o desejo de desfazer os laços que temos com ela. Pelo contrário, pode ser uma tentativa de preservá-los”, argumenta Cínthia Demaria. Mas esse ato trará consequências, adverte ela.
Por um lado, pode significar um recrudescimento do indivíduo que, ao silenciar opiniões dissonantes, tende a se tornar progressivamente mais intolerante ao diferente. Efeito disso é que, então, amos a ter nossas visões de mundo sempre reforçadas, sendo conduzidos a posicionamentos extremos. “Outro problema é que a gente vai ficando tão iludido por uma sensação de identificação, de ter encontrado alguém que pensa como eu penso, que no primeiro deslize do outro, na primeira desidentificação, vou desacreditá-la. Daí fenômenos como o do chamado ‘cancelamento’”, argumenta.
Frágil. Também reconhecendo que o recurso de se afastar e de silenciar o divergente pode, em alguma medida, ser uma estratégia para a manutenção de laços de amizade, o psicólogo Cláudio Paixão Anastácio de Paula assevera que essa prática tem impactos. “Para começar, na tentativa de preservar uma amizade, estamos esvaziando-a, pois a arte de se relacionar com o outro implica você se entregar, implica se abrir sobre o que você sente e pensa e ser acolhido pelo outro naquilo que você sente e pensa”, destaca. “Em um cenário ideal – mas é preciso maturidade para tanto – seria mais interessante discutir aqueles incômodos, tentando chegar a um meio-termo”, diz.
Contudo, há também casos em que há o legítimo desejo de se distanciar do outro. “Existem, sim, pessoas equivocadas, que ostentam uma visão nociva do ponto de vista humanitário, cujas posturas são tão absurdas que se curvar a elas significaria, de certa forma, apagar a nossa própria identidade ou apagar nossa própria subjetividade. Nessas situações, se afastar certamente será o caminho mais interessante”, acrescenta.