Aos 10 anos, ele anunciava seu futuro: “Eu vou ser o primeiro papa brasileiro”. Ganhou dos colegas do ensino médio o apelido de “Mario Padre”. Entrou em um convento da Ordem Carmelitana Descalça e lá ficou por três anos. Maria Sergio Cortella, 70, contrariando sua própria profecia, se tornou filósofo e escritor, com mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior, e acaba de lançar “Deus Nos Livre!”.
O senhor ainda tem alguma pergunta existencial sem resposta? Muitas perguntas. Quando entrei no convento, para a vida religiosa, estava simultaneamente ingressando na faculdade de filosofia. Havia muitas perguntas que os jovens e seminaristas traziam e outras que eram minhas e as quais ainda carrego: o lugar especial da religião em relação à vida, como liberdade ou como controle? A religião sendo algo que nos movimenta para a alegria da convivência ou que nos traz às vezes aquilo que nos retesa, nos amarra? Esse movimento existencial da religião não exclui a necessidade de uma indagação contínua sobre a fonte da vida. Cito no livro o pensamento do filósofo Martin Heidegger, que questiona por que existe alguma coisa, e não nada. Por que as coisas existem, no lugar de não existirem? Em uma conversa com o físico e cosmólogo Marcelo Gleiser – escrevemos juntos o livro “O Tempo e a Vida” – , chegamos à conclusão: ao tratar aquilo que é a origem do cosmos do ponto de vista físico, por mais que se recue até uma explicação que pode ser originalmente o Big Bang, ainda assim fica a pergunta sobre o que deu início a todo esse movimento. Eu não estaria na filosofia se tivesse todas as respostas. Uma das qualidades que a filosofia carrega é a de trazer indagações com mais frequência. Tenho essas questões existenciais, não mais outras que já tive, como a origem do mal. Tenho 70 anos e há mais de 60 eu me pergunto: qual é o propósito da vida?
Quais seus principais questionamentos em relação a isso? Uma das coisas mais fortes é imaginarmos que talvez não exista um propósito explícito. Uma das maiores alegrias que tenho é poder construir a lógica desse propósito ao entender o determinismo, a noção do fadado, para ser capaz de trazer à tona a ideia do meu propósito: não diminuir a vida, não a restringir, não a esgarçar. O propósito da vida é, na vida estando, ser capaz de aumentá-la, de fazer com que ela tenha mais presença do que seja rarefeita. Tenho este desejo: quando deixar de vivo estar, que eu tenha contribuído para que a vida tenha se ampliado, e não se restringido. Eu ficaria absolutamente feliz com essa ideia. Certa vez perguntei ao frei Leonardo Boff qual seria seu último desejo. Ele me respondeu: “Encontrar Deus, mas lembrando que eu teria muito mais perguntas para fazer a Ele do que Ele teria para fazer a mim”. Provavelmente, a pergunta mais forte que eu faria seria “para quê?”. Para mim, o propósito seria: vida para ter mais vida, no lugar de ter menos.
“A fé nos impulsiona a adiar o óbvio, a evitar uma ocorrência natural: nossa fragilidade e nossa finitude”. Poderia comentar essa frase do seu livro? Temos consciência da finitude a partir de determinado momento da vida. Uma criança, normalmente até os 4, 5 anos, tem ideia de que as coisas cessam, mas busca evitar isso por meio de algo que aprenderá com os adultos. Sou avô de quatro netos, e eles me perguntam: “Vovô, quando você morrer, quem vai ficar com a sua cadeira?”. E a gente corrige de modo incorreto: “Olha, filho, não é ‘quando’, é ‘se’”. É evidente que é um “quando”. Nesse sentido, afastar a concorrência da finitude é um ato de fé em que se crê que aquilo que de fato é um fato poderá ser postergado, ultraado. Ou seja, existe o fim, ou ele não é o fim. Ou ele existe e valeu e vale aquilo que é anterior ao fim. A filósofa de Belo Horizonte Terezinha de Azeredo Rios, com quem tenho o livro “Vivemos Mais! Vivemos Bem!”, cita o trecho de uma pensadora: “Morrer não é o contrário de viver, morrer é o contrário de nascer. A morte não tem contrário, a vida não tem contrário. Nesse sentido, a noção de algo que é interrompido não se dá apenas pela exclusão da finitude, mas pela ideia de que a finitude não é a finitude”.
O senhor crê na imortalidade da alma? Para mim, o que me levará à ideia de imortalidade não é a sobrevivência de uma partícula de mim, mas a minha obra e a possibilidade de ter compartilhado com outras pessoas a amorosidade. Não entendo que haverá em mim uma alma e que essa, sim, vai persistir mesmo ao final da degradação orgânica. Penso que a minha obra, a minha vida permanecerão em outras pessoas. Como diz a filósofa Terezinha: “Nós não somos imortais, mas podemos ser eternos”. Essa eternidade vem pela nossa presença na vida de outras pessoas, enquanto eu souber partilhar a vida.
Afinal, Deus nos livra de quê ou de quem? Das duas coisas. Uma das presenças mais fortes nas religiões, principalmente as que têm base judaica, cristã e islâmica, é a forma de lidar infantilmente com a noção de ser livrado do mal, dado que algumas de suas orações falam em “livrai-nos do mal”, “afastar a tentação”. Essa ideia marca, de um lado, o desejo e a esperança de que exista uma condição de existência de que aquilo que nos vitima seja colocado longe de nós e, por outro lado, que sejamos livres para fazer nossas escolhas. O título do livro não é ambíguo, ele é duplamente colocado de propósito, Deus nos livre e nos ofereça condições de liberdade de escolha e, por outro lado, permita que tenhamos o afastamento do danoso, daquilo que os hebreus chamavam de “satã”, e os gregos, de “diábolo”, de tudo que é negativo. Deus nos livre também de coisas e algumas pessoas. Eu não quero a extinção de algumas pessoas, mas quero distância de algumas delas.
“Deus Nos Livre! Entusiasmos e Desassossegos Ligados a Religião, Religiosidade e Espiritualidade”
Mario Sérgio Cortella
Vozes Nobilis
169 páginas
R$ 49,90